domingo, 1 de agosto de 2010

NOSSAS COISAS

Rubem Braga tem uma crônica linda chamada "Recado ao senhor 903", na qual ele esceve uma carta ao seu vizinho, que tinha reclamado do barulho de sua máquina de escrever. Ele dá razão ao queixoso e pede desculpas, à medida que vai desdobrando uma fileira de números: ele não sabe o nome do vizinho que mora no apartamento 903, pega o ônibus 109, que o leva ao número 527, que é o seu local de trabalho, mais especificamente na sala 305... E constata que nossa vida está toda numerada e só é "tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o repeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos". Os parágrafos de conclusão começam assim: "... Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo..."

Pois bem, essa frase, esta semana, não me saiu da cabeça...

Fui fazer compras no supermercado e, no caixa, havia um revisteiro abarrotado de revistas de toda sorte - culinária, fofocas, moldes para roupas, informações... E havia uma que me chamou a atenção: era uma revista para homens e o título, em inglês, como costumam ser as coisas que não são importantes em si, mas precisam de uma carga externa de valor, era algo sobre a saúde masculina, alguma coisa assim...

Fiquei hipnotizada pelas manchetes. A primeira era assim: "Mais prazer! Seja uma máquina de sexo". A segunda dizia: "Perca peso a jato! Dois quilos por semana". A terceira: "Drible a velhice agora!" A quarta manchete mudava de assunto: "Sete regras para se vestir bem a vida toda". As duas últimas eram: "Manual completo para ficar sarado" e "Acabe com a frescura dela". Ou seja: todos os problemas masculinos podem ser resolvidos facilmente, desde que se compre essa maravilhosa revista em que estão as soluções.

Oscar Wilde gostava de dizer que sempre há soluções fáceis (e erradas) para problemas difíceis, e passei esses últimos dias (principalmente o dia 8, o da mulher) pensando sobre o hilário absurdo dessas manchetes.

É que a sociedade do espetáculo a que nos resumimos nos transformou em números; Rubem Braga, como sempre, tem razão: nosso corpo foi transformado numa tabela de medidas e submetido a uma olimpíada de desempenhos; como se fosse uma máquina, suas finalidades parecem funcionais, busca-se a eficiência infalível, os resultados mensuráveis; está mostrado, revelado, exposto, esquadrinhado nos seus pontos mais recônditos; nosso desejo está sendo dirigido e, a toda hora, nos é dito o que desejar, como se fôssemos incapazes de saber sós o que querer; nosso erotismo, um trunfo formidável que nossos sujeitos ergueram ao longo de nossa trajetória, está simplificado, quantificado... Tudo isso está fazendo uma ansiedade competitiva, avaliativa, comparativa e um erotismo medicado, doente, assustador, na minha opinião...

Há uma espécie de perda nesses conceitos de "corpo" e "erotismo": nem nosso corpo é só capa; nem nosso sexo é quantificável matematicamente - isso tudo só tem resultado em solidão a dois ou em apagamento de sujeitos. Encerrados nessa lógica, estamos ficando uma sociedade sem partilha, sem escuta, sem escolhas, sem afeto, sem encontro... Isso tudo serve pouco ao bem-estar nosso e possível de cada dia.

Nossa felicidade não pode ser medida pelo número de nossas relações sexuais performáticas, um pênis ereto não garante a solução de nossas dificuldades de relacionamento, achar o ponto G não resolve as carências femininas...

Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo... Volta-me a frase de Rubem Braga... Um mundo onde o mérito da beleza interna confirme e vença modelos e tabelas; onde o erotismo seja também conectado à vida interior; onde conseguiremos suplantar a vivência simplesmente animal para sermos sujeitos que nos tocamos subterraneamente à medida que nossa sexualidade seja uma história a dois, construída no confronto, na escuta, no perdão, no recomeço, no desejo como jogo simbólico de sensibilidades e quereres.
No dia da mulher, pensei muito nisso tudo, inclusive em como somos tratadas como "seres frescos" ou coisas, porque temos demandas, tempos, solidões necessários que assustam quando colocados na pauta da relação...

Que, nesta vida e neste mundo, nossa sutil e complexa ontologia seja considerada num todo indivisível e possamos ser felizes na pluralidade de nossos desejos, sonhos, sujeitos, cansaços, sonos, dificuldades, incompetências...
Que, nesta vida e neste mundo, compreendamos que, como diz Adélia Prado,
"erótica é a alma" e seus desvãos, esconsos, que nem sempre queremos revelar...

Que saibamos, como Tolstói, que podemos nos comportar sem amor com coisas, mas não com seres humanos, "assim como não podemos lidar sem precaução com as abelhas"...

Que, enfim, aprendamos que sexualidade é um mundo de partilha de emoções e prazeres; que desejo é amor e apetite, além de uma potencialidade enorme, ao mesmo tempo feminina e masculina; é partilha construída na procura e na tolerância do outro; é percurso de vida toda, que plenifica, constrói, alimenta; é vitalidade e afeto; é cada um de nós reinaugurando e festejando a vida, ao mesmo tempo que temos sede e fome de nós e do outro; é suplantar o bicho e a morte que carregamos; é lutar pela vida, pelo caminho; é brincar; é resolver dificuldades internas; construir apreço próprio; é ser...


Que, sejam consideradas nossas idiossincrasias e sejam saciados nossos desejos, porque somos o outro, que merece escuta, perdão e amor.

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